A sua actividade mais exigente define-a ele nos seguintes termos: “ler o mundo através dos contos”. Este catalão de 64 anos formou-se em engenharia electrotécnica mas fez-se livreiro, terapeuta e contador de histórias. Especializou-se em ler álbuns ilustrados para um público infantil e também para adultos. Sempre com os livros na mão, para reforçar o vínculo que une a oralidade à leitura. E é na qualidade de livreiro experiente que afirma: “Cada pessoa encontra os seus próprios livros.”
Pep Duran nasceu em 1944. É livreiro desde 1970, fundador da livraria Robafaves, de Mataró, localidade catalã onde vive ainda hoje. Essa livraria daria origem, em 1975, a uma cooperativa de trabalho associado. Embora se tenha inicialmente formado em electrotecnia, em 1967, Pep Duran estudou também Psicoterapia Integrativa, em 1998, na sequência de uma depressão, e afirma-se como terapeuta Gestáltico. A Gestalt, que literalmente quer dizer “forma”, em alemão, é uma teoria no seio da Psicologia. Defende que as diferentes formas de organização perceptiva assumem um modo organizado e têm um significado distinto por cada pessoa. Assim, o todo é mais do que a soma das partes que o constituem, cada pessoa percebe essa soma à sua maneira.
Conta contos, de culturas diferentes, “com objectos, com personagens em forma de bonecos de peluche, com metáforas guardadas em caixas, com malas cheias de segredos e tesouros, que como os livros necessitam abrir-se para se lhes saborear o conteúdo.” São contos curtos, de nova criação mas que contêm a sabedoria antiga para ajudar a crescer por dentro. Como acontece às quartas-feiras, na sua La Hora del Cuento en la Librería (A Hora do Conto na Livraria), e em mais duas ou três actuações semanais nas aulas de escolas primárias e numa ou outra biblioteca pública. “Conto, mas em espaços reduzidos e silenciosos mais do que em palcos e anfiteatros.” Conta em catalão, a sua língua materna, mas também em espanhol (com sotaque catalão), conforme o lugar e as audiências. E no que respeita às condições para estabelecer com estas uma empatia, não considera que a sua própria língua materna seja determinante. Porque não é na tradução das palavras que reside a energia desse momento, mas sim numa outra essência, mágica e profunda.
Crê que as palavras lidas, ou contadas, nos ajudam a recuperar a memória sensitiva, apercebemo-nos de como a vida de manifesta através do nosso corpo. As palavras lidas, ou contadas, “esclarecem o nosso viver no mundo.”
Forma outros contadores, “porque se trata de um ofício”, e participou já em conferências para contadores em Beja, Coimbra, Pozuelo de Alarcón, Terrassa, Barcelona, Parets del Valles. Em Janeiro esteve em Portugal para o Congresso Internacional de Promoção da Leitura, na Fundação Calouste Gulbenkian.
(entrevista)
Em que consiste exactamente a actividade de livreiro?
A nossa cooperativa iniciou-se há 34 anos, começámos cinco e agora somos trinta. Compramos e vendemos livros, e vemos os livros como instrumentos de comunicação, que têm palavras para poder relacionar-se com as pessoas.
Temos de acompanhar a actividade editorial, e (en nuestra libreria recibimos) 80 novos títulos por dia, 22 mil por ano. De todos os géneros, ciência, ficção, cozinha, viagens, literatura para crianças, de tudo. É preciso olhá-los, colocá-los no seu espaço, etc. Há toda uma técnica, é um ofício. E a parte mais importante deste ofício é fazer com que cada leitor encontre os seus livros.
E o que quer dizer com essa expressão, “os seus livros”?
Há tantos livros, a indústria produz tanto, que neste momento o leitor quando chega à livraria encontra sempre livros novos. E nem sempre é fácil descobrir aí quais são os livros que me dizem alguma coisa, aqueles que comunicam com a minha voz interior, que me interessam. E o livreiro tem de acompanhar cada leitor, que é único, para que ele sinta, “este agrada-me, este não”.
Referiu a literatura para crianças. É também um género que produz muito?
Seguramente uns três mil novos títulos por ano. E aqui também temos de fazer o trabalho de acompanhamento dos pais, para que descubram o que lhes interessa. Há muitos livros que não têm interesse, mas depende muito de cada pessoa. Cada um chega à cultura pelo seu próprio caminho.
Pelo que diz, a indústria do livro não está em crise.
As vendas baixaram um pouco, a nossa livraria não tem crescido recentemente, e houve diminuições nas vendas por toda a Europa. Mas não se pode dizer que esteja em crise.
Em Espanha os livros são produtos caros?
O que quer dizer caro? Em Espanha um café custa um euro e dez. Um livro de bolso custa quatro euros, um livro infantil ilustrado custa doze e um romance de capa dura pode custar vinte ou mais. É caro? Enfim, custa dinheiro. Mas um bilhete de cinema custa seis euros.
Aqui em Portugal, surge por vezes o argumento de que as pessoas não lêem mais porque os livros são caros.
Sim, eu conheço esse argumento. Mas também há muitas bibliotecas, e aí pode-se ler sem pagar os livros. Além disso, por exemplo, em Espanha, as edições de capa flexível de livros para crianças não se vendem. Vendem-se mais as de capa dura, que são mais caras. Porque esses livros são também vistos como presentes, e não só um produto de consumo. Por outro lado há os livros de bolso, que são mesmo muito baratos. E no resto da Europa ainda mais. Por isso o preço dos livros não parece um bom argumento para se ler menos.
Podemos dizer que existe uma boa literatura e uma literatura menos boa, ou mesmo má?
O que é importante é o que agrada a cada leitor. Há literatura que é profunda, que nos fala intimamente, e outra que fala à nossa superfície. Há a literatura rápida, de consumo, que só entretém, e depois há aquela que te faz sentir vivo, que te ajuda a avaliar a tua existência, em que direcção vais. É algo que me alimenta, que me desperta sensações e emoções. Para mim, a boa literatura é esta que me fala mais fundo, que ajuda a olhar o mundo e a compreendê-lo, e a compreender-me a mim.
Mas, aparentemente, aquela literatura que não é tão boa vende melhor, não? É mais fácil, por isso é consumida por mais gente. Baseia-se em regras simples da sociedade de consumo, como a promessa de que a partir daquilo que compras vais ser feliz, sem grande esforço. Este tipo de produtos não pode conter preocupações. Tem de ser superficial e fácil. A outra literatura não serve esse objectivo [dar felicidade imediata]. Mais uma vez, é aqui que entra o papel do livreiro, que tem de perceber o que é que cada pessoa quer e ajudá-la a encontrar isso.
Quando por cá se diz que os portugueses lêem pouco, está-se a falar de que não lêem da “boa literatura”. Mas sempre foi assim, não? E depende do momento. Alguns dias apetece-me mais literatura mais fácil, e outros mais profunda. Depende de como estou. A verdade é que nunca vendemos tantos livros. E acho estranho que as pessoas comprem só porque gostam de os ter na estante. Podem não ler de imediato, mas pelo menos sabem que aquele livro lhes interessa, e pensam que algum dia vão pegar nele e lê-lo. Por outro lado, às vezes vamos reler livros que já conhecemos. Na verdade, nunca se leu tanto como agora.
Reler um livro proporciona as mesmas emoções que quando o leu pela primeira vez?
Não, são momentos distintos. Cada livro é novo para cada momento e para cada leitor. Um livro está vivo quando o leio, quando não o leio está morto. E eu também sou diferente do que era há por exemplo dez anos. Passaram-se coisas, despertaram em mim diversas emoções novas. Por isso aquelas palavras que em dada altura me falaram de uma maneira, agora falam-me de outra.
E com os contos que conta, passa-se o mesmo?
Sim. Muitas vezes os contos são os mesmos, mas de cada vez que os conto são novos para mim. Até porque os conto para públicos diferentes, e a energia que me passam é diferente. Eu sou diferente. Por exemplo, esta semana soube de uma notícia preocupante sobre a saúde de uma pessoa da família. Por isso eu estou agora marcado por isso, e as coisas que me chegam de fora tocam-me de uma maneira diferente. Ou seja, quando vou ler um livro, também a forma como ele me fala depende de como eu estou.
E o que têm os contos de diferente por oposição ao romance, por exemplo?
Quando um conto é bom, pode falar de coisas muito complicadas de forma muito simples. Usa mais linguagem simbólica, metáforas. E há uma parte de nós, que é mais intuitiva, mais mágica, com a qual este género de linguagem funciona muito bem. É alguma coisa que está em nós mas não é racional, é como se estivéssemos mais abertos mesmo a coisas que surpreendem. Nós temos três centros básicos de energia: a inteligência racional, a emocional e a instintiva.
Como é se fala com cada um desses centros?
Na verdade falamos ao racional, mas dependendo da forma como o fazemos isso vai despertar o emocional e o instintivo. Por vezes é como se o conto encarnasse dentro de mim. Por vezes encontro pessoas que me ouviram contar um conto há muito tempo e vêm ter comigo, dez, quinze anos depois, a lembrar esse momento: “Sabes, uma vez contaste-me um conto.” E eu não sei o que acontece a cada um, cada pessoa abre-se e há uma energia que passa. As palavras descrevem cenas que se interligam com algumas imagens da recordação, e o nosso corpo guarda essas imagens e armazena sensações que despertam emoções.
Qual a diferença entre ouvir um conto e lê-lo?
A oralidade, esse momento de contar, é um intercâmbio de energia. O contador de contos passa a sua energia. E abre-se para ser um canal de energia, pelas palavras, e pela sua voz que as vai dizendo. As nossas vibrações são energia. Eu não sei como vibra, mas sei que corresponde à minha verdade: sou uma pessoa clara, honesta, não tenho muito ego. E cada pessoa passa a sua verdade. Quem conta um conto, conta-o a partir de si mesmo, e dirige-se a outro ser.
Qual é, no meio dessas trocas, o papel do autor?
Eu sou só um veículo, um canal. O autor é o criador. Eu conto com os livros na mão, e portanto essa criação está ali, presente. Eu sou só aquele que torna possível a passagem de um lado ao outro. O meu contributo está no momento presente, no que se passa agora.
Ainda sobre a comparação entre o conto e o romance, pensa que este último requer um esforço, um investimento maior da parte do leitor?
Acho que não. São coisas diferentes. Quando leio um romance, estou disposto a ler muito. Um romance prende-te por mais tempo, é uma ligação mais demorada. O conto é mais… Ah! Tem um impacto mais surpreendente.
Mas isso não significa que podemos ler muitos contos seguidos? Ou seja, ler também por muito tempo embora de forma diferente?
Não. Podemos ler um, dois, três, mas não muito mais, porque cada um é um universo. Exige uma disposição diferente. Com um romance podemos ter esses momentos de espanto, mas há toda uma preparação para chegar aí, e é esta preparação demorada que nos prende por mais tempo.
No conto é tudo mais repentino?
Sim. O conto não fala ao tempo de uma pessoa, fala à sua essência. O mesmo conto pode ser contado a crianças e adultos, a políticos, artistas e homens de negócios. E as pessoas surpreendem-se porque são levadas por um caminho que não esperavam. É um pouco como funciona a publicidade, pequenas narrativas que, através de metáforas e símbolos, pretendem despertar essa parte mais interna. E os livros sagrados são também contos, um atrás do outro, porque se trata de explicar algo muito profundo.
De que forma é que a sua formação e actividade de terapeuta se liga com a actividade de contador de contos?
Bom, na verdade primeiro estudei engenharia electrotécnica. Mas nunca trabalhei nisso. Vivia-se o franquismo, meteram-se vários acontecimentos, e a dada altura apaixonei-me pelos livros. Eu desejava ser pirata, para ser rico [risos]. E pelos livros também é uma forma de se procurar um tesouro. Mas a comprar e vender livros aprendi-lhes o gosto. Depois, há uns vinte anos, tive uma depressão, (no me inportava vivir o morir) . E nessa altura fiz terapia e comecei a interessar-me por isso. Depois pensei que poderia também eu ajudar outros, e formei-me como terapeuta. E então percebi que queria contar contos que ajudassem a crescer por dentro, a dar-me conta de quem sou.
Existe então uma função terapêutica na leitura?
Sim, se a leitura consiste em tomar consciência do que se passa comigo, se me fala e me ajuda a compreender melhor, a mim e ao mundo, então estou a fazer terapia.
Isso pressupõe que quando estamos deprimidos é porque não nos compreendemos?
Na depressão há uma perda profunda, há uma dor, algo que não vai bem e que não conseguimos resolver. E se vai muito longe podemos mesmo chegar ao suicídio. Mas quando me percebo melhor e me aceito, quando aceito que sou bom e mau e várias coisas de uma vez, que a vida é desta forma e daquela, então adquiro instrumentos para ser feliz.
Mas ler Dostoiévski, por exemplo, quando se está deprimido não será de grande ajuda terapêutica. Ou é?
Veja, eu tenho um filho de onze anos, tenho um de trinta e este de onze, que gosta de muito de livros de monstros, de vampiros. Um dia ele estava a ler um livro ilustrado sobre vampiros e eu perguntei-lhe: “Essas imagens não te assustam?” E ele respondeu: “Não. Ajudam-me a perceber as coisas obscuras que há por aí.” E quando lemos Dostoiévski ajuda-nos a perceber essa face mais obscura, que existe. A tristeza faz parte da vida. Quando tenho medo, e eu tenho muito, se lhe virar as costas ele não desaparece. É bom poder falar dele e enfrentá-lo, porque assim é mais fácil resolver o que nos causa esse medo.
Quando muitas pessoas se queixam de que os miúdos não lêem, pensa que na verdade eles até lêem, só não lêem o que os adultos queriam que eles lessem?
O que eu penso é que cada pessoa encontra os seus livros. O meu filho mais velho, que é fotógrafo, não é um grande leitor. E quando era mais pequeno reparava: “Que pena, não é? Tu és livreiro e eu não gosto de ler.” Mas cada um encontra o seu lugar para estar no mundo. O meu mais novo gosta de banda desenhada. A nossa influência acontece mais por contágio do que por imposição. Depois, cada um faz o seu caminho.